Crer, entender e fazer como José

jose 01 Crer, entender e fazer como José

Pe. Mauro Negro, OSJ
No limiar da Solenidade de nosso Santo Patriarca e inspiração carismática, São José, desejo partilhar com os irmãos de caminhada dois ou três pensamentos que tenho alimentado nos últimos tempos e o faço com simplicidade e real humildade, reconhecendo que, como todos, estou também à procura da coerência de identidade e vida. Tratam-se do fruto de reflexões feitas em ambientes acadêmicos, pastorais e no silêncio de algumas madrugadas insones.
[1] O tão conhecido relato da anunciação a José, em Mateus 1,18–25, que amanhã, dia 19 e março, iremos propor aos nossos fiéis, apresenta a afirmação: José, ao despertar do sono, agiu conforme o Anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu em casa sua mulher (versículo 24). Admito que, embora tenha analisado em outras circunstâncias esta perícope de Mateus, nunca me detive neste versículo que parecia-me mais consequência da comunicação angelical ao nosso Patriarca. Mas agora o versículo parece-me mais do que uma consequência: é a declaração da Fé que animava nosso Modelo de vida.
José “desperta” do sono, não com o torpor dos sonolentos, com o susto dos desavisados ou desligados, ou ainda com a ansiedade dos atrasados. Ele desperta com a consciência dos justos, pois é isto que ele era: “justo”, como Mateus indica no versículo 19. Este “despertar” indica a decisão do homem de Fé.
Infelizmente, no meu modesto modo de ver, não aproveitamos adequadamente o kairós do Ano da Fé que Bento XVI sabiamente propôs com a intenção criar ânimo para a caminhada cristã, pois a Fé é o específico que podemos oferecer ao mundo, além do compromisso com a História e quem a faz. Neste Ano da Fé deveríamos ter notado e feito notar que esta virtude não pode existir sem dois movimentos. Primeiro, a vontade de crer, seguido do entendimento. Credo ut intelligam dizia e propunha Agostinho — creio para entender, pois somente dispondo-me a aceitar algo além de mim mesmo é que poderei, em primeira pessoa, apreender o Mistério.
A primeira certeza que temos do relato mateano da anunciação é que José vivia, de antemão, a decisão de crer, o que o levou ao entendimento da comunicação angélica. E isto leva ao segundo ponto do versículo 24, que tem uma notável e decisiva importância na dinâmica da experiência original do advento do Mistério da Encarnação.
José “desperta” e, como num ato contínuo, recebe “em casa sua mulher”. E o faz ciente de que nela acontece o Mistério do Eterno pelo qual ele tem uma reverencia “humanamente infinita”. Note-se que José, ao contrário do que muitos pensam e uma conhecida música popular erroneamente indica[1], não é presa de um destino fatal e inegociável, uma espécie de vítima consciente do inevitável. Nada disto! No texto de Mateus ele é coerente com o que conhece de antemão; e conhece porque crê. Se não acreditasse não entenderia e, justamente por entender e crer, ele age.
Talvez a dificuldade em crer que muitos sentem, hoje e outros tempos, não está apenas no entendimento que o ato de Fé consciente e esclarecido provoca, inclusive contra muitas percepções que nos são impostas pela modernidade, que Zigmund Baumann chama de “líquida”[2]. A dificuldade em crer está, também, no fato de que a Fé exige um desprendimento de si, uma mudança não apenas conceitual, mas factual: trata-se de mudar o rumo, redefinir opções e metas em função do encontro provocado pela Fé e que ela mesma provoca. É o que os gregos chamavam e a Filosofia entende por kinesis.
É assim que José age pois tem Fé e entende o que está acontecendo em Maria, não sendo ignorante do Mistério do Deus vivo que age em sua história. Estou cada vez mais convencido do que nosso confrade Tarcísio Stramare[3] sempre afirmou, e que pode ser assim expresso: José não é um desentendido do Evento da Salvação, e eu acrescento: muito menos um covarde que foge da crise, um pusilânime que vai para onde o vento sopra… Ele é consciente da ação divina e com ela colabora.
[2] O segundo ponto que desejo apenas introduzir é a necessária compreensão de nosso Carisma, buscado justamente em José e em sua identidade. Neste dia de nosso Grande Patriarca, como afirmação nosso Pai Fundador São José Marello, poderíamos olhar com mais atenção para nosso Carisma e para suas consequências teológica e práticas.
Não podemos dizer, em absoluto, que não conhecemos nosso Carisma. Depois de tantos esforços empreendidos pelos últimos Provinciais e Conselhos[4] é certo que todos nós pudemos analisar e debater nosso Carisma, compreendendo que Carisma não é o que fazemos, mas o que somos. O que fazemos é resultado do Carisma viabilizado, articulado.
Nosso Carisma, como Mário Guinzoni nos indica e Severino Dalmaso confirma, é o “escondimento”[5] como o de José, nos “cuidados com os interesses de Jesus”. É neste ponto que podemos nos esforçar com mais originalidade. Vejamos uma comparação: No dia-a-dia falamos do genérico, aplicado a produtos de consumo, com alguma aprovação e, em muitos momentos, com zombaria e ironia. Corremos o risco de viver, como consagrados Oblatos de São José, com a característica do genérico no Carisma. E no entanto ele é mais do muitos outros: absolutamente original — em dois sentidos: [1] original como não imitador de outros existentes; e [2] original pois vindo da mais fundamental fonte: a Encarnação, entrada de Deus no tempo da história.
Nossa vida religiosa, além de estar alicerçada em Cristo Jesus e na sua mediação, deve buscar esta originalidade em José, pois nele a podemos encontrar. O “escondimento” à sombra do Mistério de Deus, na oração, no estudo, no trabalho, na compreensão dos movimentos da vida, da sociedade e dos que estão próximos, é nosso caminho de viabilização do Carisma. E a procura dos “interesses de Jesus”, que seguramente está interessado na salvação dos jovens, das famílias, na educação, nos mais simples e fragilizados, é sua melhor expressão.
[3] Antes de fazer, José entendeu. Ele “fez” somente depois de ter “entendido” e para tanto permitiu-se um ato de fé, “acreditou”. É assim a ordem da ação da Graça, expressa em verbos: crer, entender, fazer. Antes de fazer, entender e, antes de entender, crer.
E aqui anoto o terceiro ponto. Fazer implica em riscos, perdas e até renúncias. Estando eu próximo de alguns confrades jovens e candidatos à vida religiosa e presbiteral em nossa família percebo na maioria a generosidade em renunciar, em transformar, readequar desejos e ações em função da descoberta do Carisma. É necessário fazer notar que o conceito de Carisma, em muitos deles, ainda é funcional, e não fundamental. Mas a maioria está já compreendendo.
E é observando estes jovens que eu me pergunto: não devemos nós, mais vividos na consagração e no Ministério, retomar a antiga generosidade em fazer, viver a originalidade do entendimento e da fé como vivemos um dia, nos tempos de formação inicial e nos primeiros anos de perpétuos? Para nós as normas eram tão questionáveis, as burocracias tão dispensáveis, os esquemas impostos tão frágeis… O tempo vai passando e vamos nos munindo de exigências burocráticas, impostas aos nossos paroquianos que, aos poucos, vão desanimando pelos impedimentos que se criam para o acesso à graça ou aos seus sinais no nosso quotidiano pastoral. Ou são os múltiplos esquemas que vamos criando ao nosso lado, propostos aos nossos alunos, aos formandos, aos funcionários, para justificar nossos caprichos pessoais e manias, tantas vezes diretamente proporcionais ao número de nossos anos que acumulamos… Pergunto-me se José, no ato de crer e entender o Mistério acontecendo em Maria, tivesse consultado os sábios da Fé Judaica de seu tempo, tivesse pedido permissão para inovar em relação aos costumes estabelecidos pela ordem judaica — será que ele teria conseguido acolher sua Esposa em casa? Se José se apoiasse em normas burocráticas, em seguranças protocolares do judaísmo farisaico, teria a Encarnação acontecido? É uma questão de contorno acadêmico, eu sei, mas me inspira alguma consideração a respeito.
Nossa ação de Oblatos de São José deve estar, na minha humilde visão, em sintonia com aquela de José. O fato de nosso Carisma nos colocar em Cristo Jesus, escondidos nele, e cuidando de seus interesses, nos leva a acolher, aceitar, ir além de nossa zona de conforto, de nossos esquemas mentais e práticos. É saindo de nós, na melhor demonstração de crer e entender, que viveremos a práxis de nosso Carisma de escondidos em Cristo, buscando seus interesses.
[4] A Solenidade de São nos permite retomar os antigos afetos, aqueles sentimentos e inspirações que nos levaram a belíssimos atos de generosidade, que acabaram por empenhar toda nossa vida. Na prática de refazer o Ato de Consagração e Súplica a São José, tenhamos o desejo de imergir na Presença de Jesus, “com-fundindo” nossa inteligência, vontade, afeto com Ele, para compreender seus interesses e, como José, agir.
Pe. Mauro Negro, OSJ
São Paulo, 18 de Março de 2014

[1] Aquela que diz assim “Olha o que foi meu bom José…”. Ela supõe um José que nada entende, que é vítima de uma escolha não livre, impensada e sem fé!
[2] Evidenciando não tanto sua fluidez, mas sua indefinição e falta de forma. Cf. os títulos de Z. Baumann: Modernidade líquidaAmor líquido, etc.
[3] E todos sabemos de sua importância neste ponto. Cabe aqui uma nova leitura da Exortação Apostólica Redemptoris Custus, que iremos rever neste ano no 5º Congresso Teológico e Pastoral de São José.
[4] Recordemos aqui as duas edições do Projeto Revitalizar a vida Consagrada, bem como a programação formativa proposta pelo Padre Geral em sua última visita canônica à Província.
[5] Admito que o conceito “escondimento” ainda não está bem determinado, pois muitas vezes confunde-se com omissão voluntária, um eximir-se de responsabilidades… Ora, é justamente o contrário disto, sem o elemento da evidencia ou exibição. O tema vale e exige ainda uma melhor pontuação.

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