JOSÉ, ESPOSO DE MARIA

A figura de São José tem, na Igreja primitiva, um significado eminentemente cristológico. Está intimamente ligada às origens do Salvador, concebido de maneira virginal, filho de Abraão e de Davi.

O gênero literário dos Evangelhos da infância (fonte quase única de tudo aquilo que conhecemos dele) merece um exame especial.

Em Mt 1,9 José é denominado “Justo”, um atributo que revela o conceito do evangelista a respeito do modo de proceder habitual do nosso santo, manifestado particularmente numa situação difícil e resolutiva. José é aquele que insere oficialmente Jesus no povo de Deus, dando-lhe um lugar de honra na descendência de Abraão e Davi. Embora não convivesse ainda com Maria, é chamado a tomar uma decisão em relação ao futuro de sua esposa e do Salvador.

Em seguida aparece em cada momento importante da infância de Jesus: circuncisão, imposição do nome, purificação e apresentação ao templo, fuga para o Egito, volta à Palestina, residência em Nazaré, inserção de Jesus na vida religiosa, social e civil do mundo judaico do tempo. A educação humana de Jesus tem, nele, o seu responsável. Numa palavra, ele é aquele a quem foi concedido ser chamado pelo mesmo Salvador com o nome inefável de “Abbá, Pai”.

1. SÃO JOSÉ NA TRADIÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA.

Na pregação apostólica o anúncio do Evangelho iniciava com a aparição do Batista nas margens do Jordão (At 1,21-22; 2,22-35; 10,37-43; 13,23-31; Mc e João seguem o mesmo esquema). O Evangelho da Infância, fonte quase única do nosso conhecimento sobre São José, não pertence às camadas mais antigas do anúncio cristão.

Porém, já nos testemunhos mais antigos da mensagem evangélica acerca de Jesus ressuscitado, existe algo que evoca São José. Se, por exemplo, Jesus é chamado “Filho de Davi” (Mc 10; At 2,29-30) ou “filho de mulher” (Gal 4,4), estes apelativos manifestam interesse para com a misteriosa origem do Salvador e envolvem necessariamente a figura do esposo de Maria.

Tudo isto, porém, era proclamado, narrado, procurado com uma ótica eminentemente cristológica. Nesta luz começaram a aparecer na Igreja primitiva, aqui e acolá, narrações da infância de Jesus que, elaboradas por Mateus e Lucas de modo apropriado, se fixaram, depois, nos respectivos Evangelhos (Mt 1-2 e Lc 1-2). Apareceu assim, ao lado do Redentor, São José com seu papel de servo fiel.

Foi assim que viemos ao conhecimento de algo dele. Podemos, então, extrair dos Evangelhos uma série mui limitada de informações que não permitem, com certeza, o esboço de uma biografia embora vagamente completa. Esposo de Maria (Mt 1,18-25), José é chamado filho de Eli (Lc 3,23) ou de Jacó (Mt 1,16). Não conhecemos a razão desta dupla paternidade, não obstante se teçam hipóteses. Fica claro, todavia, que ele pertence à linhagem de Davi (Mt 1,1-20; Lc 3,23-32) e, portanto, de Abraão. Estes dados são de extrema importância em relação a Jesus Messias (Mt 1,17).

O primeiro Evangelho lembra também o ofício de José. Ele é chamado “tekton”, isto é, carpinteiro e ferreiro. Da profissão do pai nasce aquela de Jesus (Mc 6,3; Mt 13,55). O trabalho de carpinteiro era transmitido de pai para filho. Tal tipo de trabalho tornava menos penosas as mudanças contínuas que José teve que enfrentar: Nazaré, Belém, Egito...Belém de novo eNazaré...

É no Evangelho da Infância do Salvador (Mt 1-2; Lc 1-2) que fica definido o papel de José. Segundo Mateus José é aquele que voluntária e responsavelmente obedece a um convite do céu e toma em sua casa Maria grávida por obra do espírito Santo. Assume, outrossim, a paternidade de Jesus dando-lhe um nome imposto por Deus (Mt 1,18-25). Ele está em Belém, ao lado de Maria, na hora do parto (Mt 2,1-13); protege mãe e filho na perseguição de Herodes fugindo com eles para o Egito (Mt 2,13-18); leva-os de novo para a Palestina após a morte do perseguidor, e vai a Nazaré (Mt 2,19-23), o que dará azo para Jesus ser chamado nazareno.

Lucas completa o quadro observando que Nazaré era o lugar onde morava na ocasião da Anunciação a Maria (Lc 1,26) e que o nascimento de Jesus em Belém aconteceu por causa de um recenseamento geral, emanado por César Augusto (Lc 2,1-4).

Lendo o Evangelho de Mateus se tem a impressão de que José seja mais belemita do que nazaretano. Em Belém está a origem da família davídica, em Belém ele registra seu nome, o nome de sua mulher e de seu filho.

Lucas não esquece de sublinhar a observância exemplar das leis e das tradições religiosas por parte de São José: a circuncisão e a imposição do nome no oitavo dia, a purificação da mãe e o resgate do primogênito no dia determinado e no templo de Jerusalém; a peregrinação anual em ocasião da Páscoa para o monte e a casa de Deus (2,21-24.41.51).

No conjunto transparece um israelita profundamente piedoso, pronto para colher, com uma obediência fidelíssima, a vontade de Deus (Mt 1,24; 2,21-22). É apresentado como um pobre (Lc 2,22-24) exercendo com completa consciência e responsabilidade e, ao mesmo tempo, a autoridade paterna (Lc 2,48) com uma autoridade sem par.

Na leitura dos Evangelhos da infância é necessário prestar a maior atenção ao gênero literário, ao sentido e à finalidade das diversas seções. Não podemos esquecer que as narrações de Mt 1-2 e Lucas 1-2 estão a serviço da pessoa de Jesus e orientadas exclusivamente para Jesus. Não devemos olvidar, outrossim, que a fé e as condições da Igreja primitiva exercem uma influência enorme sobre estas páginas e nem ler o que é relativo à infância com o mesmo método com que lemos os relatos da vida pública de Jesus e, tanto menos, usar aqueles critérios que usamos na leitura de autores antigos não judeus ou até de autores modernos. O que Mateus e Lucas realmente entendem comunicar não é tanto uma narração de fatos acontecidos mas, sobretudo, mensagens teológicas, pois Mateus e Lucas são teólogos e catequistas.

Precisa, então, encarar os Evangelhos da infância como um testemunho, uma proclamação que diz respeito a Jesus e á sua identidade de Salvador que vive entre nós (Mt 1,23), de Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo (Mt 1,21), de Filho do Pai Celeste (Mt 2,15).

Ao lado de Jesus e bem antes de ele nascer, José tem uma missão específica. Ele é o homem que, renunciando a todos os seus sonhos legítimos (Mt 1,25), coopera com Deus para dar início à história da Redenção, aos novos tempos. È o homem que crê e que aceita. Lembranos a fé de Abraão e sua adesão à vontade de Deus a fim de que se cumpram seus misteriosos planos de salvação.

2. SENDO JUSTO

A narração da Infância de Lucas é amis ampla e variada, mais rica de personagens, mais elaborada. Aquela da Mateus é mais resumida em sua descrição. Lucas mostra um interesse particular por Maria, Mateus por José. No Evangelho de Mateus, José exerce sempre o papel de protagonista no serviço do Salvador. A seção que mais o caracteriza está condensada em 1,18-25. É a seção central da narração da infância do primeiro Evangelho, aquela que mais transmite na sua essência a virtude e a dignidade de São José. Trata não somente do anúncio do Anjo do Senhor, mas principalmente de ter ele recebido Maria como esposa e ter dado à criança o nome “Jesus”, indicado pelo Anjo. O trecho nos dá também o juízo do evangelista a respeito de José: Ele era Justo (Mt 1,19).

Qual o sentido deste adjetivo, proferido por um evangelista tão parco em proferir louvores? Porque José é chamado justo justamente naquela circunstância e como justificativa de seu comportamento? Até hoje não existe concordância entre os exegetas nas respostas dadas a estas interrogações. As linhas de solução se reduzem a duas.

Existe uma interpretação recente que pressupõe, a partir de Mt 1,18-21, um José que conhecia o caráter prodigioso da gravidez de sua noiva e que o menino nascituro seria o Salvador de Israel, o Filho de Deus. Quando o evangelista escreve: “Antes de passarem a conviver, ela encontrou-se grávida pela ação do Espírito Santo” (1,18), entende enunciar um fato do qual não somente Maria estava consciente, mas também José. O que o Anjo disse depois (1,20-21) não tinha por finalidade desvendar o segredo de Maria, mas o plano de Deus a seu respeito. Ele deve tomar Maria em sua casa não obstante aquilo que ele conhece, deve dar o nome ao filho dela e acolhe-lo como filho próprio.

José é convidado a ficar ao lado de Maria por uma finalidade eminentemente messiânica, para cooperar com a Virgem Mãe em tudo aquilo que não é concepção propriamente dita. Ela há de gerar um filho virginalmente, mas o papel de Pai, em todo caso, será dele. Esta hipótese modifica a tradução habitual que se faz do trecho de maneira sensível sem, todavia, introduzir algo completamente alheio à possível interpretação do mesmo. “José, filho de Davi, não tenhas receio de receber Maria, tua esposa. Como sabes, o que nela foi gerado vem
do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e tu lhe porás o nome de Jesus”. Volta, então, a pergunta. Porque José quis abandonar Maria se ele sabia ser o menino um fruto milagroso da intervenção do céu, o Filho do Deus Altíssimo? Tal atitude não implicava, talvez, em expor Maria à desonra, a uma vida de indigência e sofrimento tanto mais doloroso por ser ela inocente e com seu esposo a par de tudo?

O motivo da decisão pensada por São José estaria no fato de ter ele descoberto em Maria um plano divino superior àquele do matrimônio. Deus descartou os projetos de José. José, propondo-se abandonar Maria, entende pedir a Deus que revele a sua vontade, de assegurar ele mesmo o futuro da Virgem. Por ser justo, José não quer assumir uma paternidade que lhe não compete e nem divulgar o segredo de Deus. Quando, porém, aparece o anjo, ele não hesita em aceitar plenamente à decisão divina. Assim se cumpre sua justiça. Ele é justo enquanto permite a Deus superar o obstáculo de um nascimento sem pai terreno.

Esta interpretação tem muitos méritos e muitos pontos válidos. O conjunto é fascinante. Todavia o texto de Mateus parece contradizê-la. Embora filologicamente aceitável, a versão parece estar impregnada de sutilezas e de incongruências.

A afirmação de que José teria conhecido o milagre da concepção virginal de Maria antes do anúncio evangélico não é provada. Trata-se de um milagre que nunca teve precedentes no AT e, portanto, impensável para São José. Quando Mateus relata a concepção virginal de Maria (1,18) proclama sua fé e a fé da Igreja, lembra um evento importantíssimo que seus leitores e ouvintes já conhecem: Maria foi mãe por obra do Espírito Santo. Sua intenção é, agora, contar como José se tornou Pai perante a Lei e os homens, dando a Jesus o direito de se chamar filho de Davi e de Abraão (1,1). Isto não significa que José estivesse a par do prodígio antes da aparição do Anjo.

José, então, recebe do Anjo a grande notícia: o Filho de Maria é fruto do Espírito Santo!

Em nome da descendência de Abraão e de Davi, dos patriarcas e dos Profetas, de toda a Antiga Aliança já em fase de conclusão, ele deverá acolher Maria na sua casa e dar o nome a Jesus. O Redentor, porém, não é simplesmente um israelita, é o Filho do Altíssimo, quem redime toda culpa, é o “Deus conosco” (Mt 2,15; 1,21.23). Ele criará o menino em nome de toda a humanidade, cuidará daquela carne frágil destinada a se tornar, pela Cruz, o Pão da Vida Eterna, lugar de reconciliação cósmica e total entre o Criador e as criaturas (Col 1,19-20).

Porque, então, queria abandonar Maria antes do anúncio celeste? Ele era completamente estranho àquela gravidez. A lei era severa a respeito de toda gravidez ilegítima (Dt 22,23-26) embora, no caso, não existisse a obrigação de alguma condenação pública. José nada sabe daquela maternidade. Certamente ele não entende de maneira alguma denunciar Maria, nada cogita que a possa desonrar publicamente. E isto porque ele é Justo (Mt 1,19). Por ser justo pensa em deixar Maria secretamente, em silêncio, com a declaração de que ela, de agora em diante, está livre de todo vínculo para com ele. Não a denunciará. José não entende o enigma que se desvela diante dele, enigma que perturba assoladoramente seu íntimo porque mexe naquilo que mais profundamente o atinge.

Ele pensa que não deve aceitar na sua descendência aquele filho esperado. Não seria um comportamento justo para com seus antecessores e nem com sua família. Ele não fará isto. Além disto, seu modo de agir, revela somente estima e respeito para com Maria. Embora todas as aparências estejam em desfavor da esposa, embora a lei seja severa em casos semelhantes, ele percebe que seria injusto expô-la à desonra pública. José não aceita uma solução legalista, fria, abstrata, sem amor ao próximo. Ele é justo, honesto, pio fiel e bom. Seu comportamento é, antes de tudo, um testemunho da virtude de Maria. Ele a conhece comoum noivo pode conhecer sua noiva, conhece ao menos um pouco de sua integridade moral. Embora uma concepção virginal seja uma hipótese inconcebível, embora nunca se fale disto nos livros sagrados, José não aceita culpa em Maria. Seu agir se torna, assim, um modelo de comportamento humano, reto, não formalista e nem precipitado. É um exemplo de adesão ao espírito, mais do que à letra da lei.

Para entendender sua grandeza, basta compará-lo àquele zelo amargo e orgulhoso que manifestaram os judeus quando acusaram a mulher adúltera, o que foi tão duramente condenado por Jesus (Jo 8,1-11).

A atitude de José contém, aqui, um preanuncio daquela justiça proclamada por Jesus, justiça que não se aplaca com muitas observâncias legais, que não julga ninguém sem motivos verdadeiros, que não é completa se não for uma justiça que seja amor ao Próximo (Mt 5,6; 5,48; 22,34-40).

3. FILHO DE DAVI (Mt 1,20; Lc 1,17)

Aparecendo a José, o Anjo lhe dirige o apelativo: “Filho de Davi” (Mt 1,20). É uma expressão profética com uma extensão teológica significativa. Este título é reservado unicamente para Jesus em todas as outras partes do Evangelho (Mt 1,1; 9,27; 15.22; 20.30-31 etc...). Para os leitores cristãos do tempo do evangelista, o apelativo evocava as grandes profecias messiânicas do AT, sobretudo as mais antigas (2Sam 7,8-16; Sl 89,20-38; 132,13-18). Com sua paternidade, José conferia a Jesus não somente a honra muito apreciada de uma linhagem antiga e nobre e a pureza da descendência judaica, cujo valor era sublinhado pelo culto das genealogias, mas transmitia, sobretudo, o título de “Filho de Davi”, intimamente ligado com as esperanças messiânicas. Só através de José é que Jesus se tornou membro da família davídica e pode ser declarado, em sentido pleno, herdeiro do trono de Davi (Lc 1,32), rei de Israel (Mt 2,2; 21,5; 27,11; Mc 15,2.9; Lc 24,3.37) e, portanto, Rei Universal (Jo 12,15; 19,17-22; 18,33-37).

Através de José, Jesus se torna “Filho de Abraão” (Mt 1,1). A história de Abraão tem na salvação um eixo essencial. As promessas de Deus se cumpririam em sua descendência (Gen 12,2-3; 17,7). Era em Jesus, “sêmen de Abraão”, que seriam benditas todas as gentes (Gl 3,16).

Por isto, a lista genealógica de Mateus começa por lá (1,1-17). O novo Israel, o Israel de Deus, como reafirma São Paulo, é a extensão, o desenvolvimento da presença de Jesus no mundo, a dilatação no espaço séculos afora daquela filiação de Abraão que foi Jesus (Gl 3,27-29).

A figura de José nesta ótica, nos interessa sobremaneira. Ele constitui um daqueles elos essenciais entre a antiga e a nova Aliança, um ponto de conjunção na história da salvação, o que não nos pode deixar indiferentes.

Lucas remonta a genealogia de Jesus de José até Adão, ou melhor, até Deus de quem Abraão é imagem e filho (Lc 3,23-38). A pessoa do Salvador estende suas raízes na profundeza do solo humano: não pertence unicamente a Davi e a Abraão, mas a toda humanidade. Não é somente o herdeiro de Davi e o verdadeiro sêmen de Abraão, mas o fermento que transforma toda a estirpe humana. É irmão de cada um de nós, de cada homem até o fim dos tempos e, remontando no passado, até à escuridão mais densa e remota das origens humanas. Carne da nossa carne, sangue do nosso sangue, ele pertence à humanidade. É José quem acolhe Jesus na grande família humana, que lhe dá um nome, um nome honrado e significativo.

José o chama “Yeshua bem Yosef”, tornando em tudo igual a nós, fora que no pecado (Hbr 4,15). Com este nome que proclama a salvação do mundo, Jesus se torna o novo Adão, o progenitor da nova criação (1Cor 15,20-22).

Os dois Evangelhos da Infância esclarecem a pertença de Jesus ao mundo celeste: concebido de Espírito Santo (Mt 1,18-25; 2,15; Lc 1,32-35). Aqui está o aspecto mais precioso e misterioso da sua presença entre os homens: é o dom do Pai ao mundo (Jo.3,16). Porém, as duas narrações enfocam também concretamente a realidade de sua existência terrestre e humana: concebido, nascido, perseguido, pobre, criança, adolescente, jovem, operário, nazareno. É o aspecto sacramental da Encarnação, que gera mal entendidos e escândalos (Mt 11,2-6; 13,54-57; Jo 1,46; 7,41-43) e sublinha a necessidade da presença de Maria e José. Portanto, o lugar deles na história da salvação é insubstituível.

4. JOSÉ, O ESPOSO DE MARIA. Mt 1,18; Lc 1,27.

No tempo da concepção virginal, José e Maria não moravam na mesma casa. A condiçãodos dois jovens é indicada pelo Evangelho com o termo “noivos” (Mt 1,18; Lc 1,27). Todavia a situação jurídica dos dois correspondia mas àquilo que nós entendemos por “esposo”. O noivado representava, para os judeus, a pertença da noiva ao noivo da mesma maneira como a esposa pertence ao marido. Realizava-se mediante a paga de uma determinada quantia ao pai da moça por parte do moço. Era uma compensação pela perda em trabalho que a família sofria com a saída de uma pessoa. Então o jovem se tornava senhor (Baal) dela. Ela lhe pertencia, era propriedade sua (Gen 20,3.7; Dt 22,22).

Embora continuando com os pais, ela devia obediência e fidelidade absoluta ao noivo, tanto quanto a mulher deve para com o marido. Durante o noivado não havia proibição de ter relações sexuais. A infidelidade da noiva era julgada analogamente àquela da esposa. O divórcio era regulamentado pelas mesmas leis (Dt 22,22-27). Talvez é em razão deste uso matrimonial que o evangelista a chama “noiva”ainda quando os dois vão a Belém e ela espera o parto iminente (Lc 2,5). Desde que veio a conhecer a gravidez de Maria, José faz transparecer somente estima e o amor para com ela. Um detalhe de linguagem nos ajuda a descobrir nele um propósito firme: não prejudicar Maria. O propósito de não prejudicá-la está expressa como um projeto, uma finalidade, uma vontade decidida (Mt 1,19). Aquela estima, aquele amor se  transformaram em uma autêntica veneração quando ele veio a conhecer a natureza da gravidez e acolheu Maria em sua casa por vontade clara de Deus. Ele obedecia, por ser este seu programa de vida: fidelidade incondicional a Deus. Aquele Espírito do Senhor que tinha manifestado a sua onipotência criadora no início dos tempos (Gen 1-3; Sl 104,29-30; 33,6), que tinha inspirado reis, sábios e profetas em Israel (Gen 41,38; Jz 3,10; 6,34; 1Sm 11,6; 2Sm 23,1-2; 2 Rs 2,9; Is 48,16; Ez 3,12-14.24) agia agora no silêncio, ao seu lado, operando no corpo de uma virgem uma obra ainda mais admirável do que aquela da criação.

Agora Maria se apresentava a José como o lugar escolhido por Deus, o Templo do Altíssimo, onde a presença inefável se manifestava bem mais do que no Santo dos Santos.

5. EIS, TEU PAI E EU...(LC 2,48)

José foi chamado para proteger Maria e Jesus das calúnias contra as suas origens levantadas no ambiente judaico quando apareceram em público os Evangelhos da Infância.

Além disto, José foi chamado para dar a Jesus o direito de inserir-se nas gerações de Abraão e Davi.

Foi chamado a dar um nome ao filho. Para os antigos dar o nome era a mesma coisa do que revelar a índole, a natureza, a vocação, o destino da pessoa nomeada. Por isto não é José quem dá o nome à criança e nem sua esposa. Aquele nome: “Deus redime”, “Deus salva” é sugerido pelo céu. Era um nome freqüente na história de Israel, mas agora recebia uma plenitude de significado tal que a nenhuma outra pessoa caberia tão bem como à criança nascida de Maria ((Mt 1,21).

O nome era dado no oitavo dia, em ocasião da circuncisão (Lc 2,21). Então o menino adquiria uma personalidade própria, uma existência definitivamente distinta daquela da mãe, entrava oficialmente a fazer parte do povo de Deus e podia participar de agora em diante, dos direitos e deveres de um filho de Abraão, de um autêntico israelita, depositário das promessas divinas.

Pelo fato de Jesus passar sua juventude na localidade de Nazaré, os judeus contestaram sua situação de Messias (Jo 7,27). Contestaram-na outrossim por ter sido ele simplesmente um carpinteiro, o filho de José e de Maria (Mc 6,2-3; Mt 13,55; Lc 3,23; Jo 6,42). Efetivamente podemos afirmar que José foi chamado por Deus para encobrir a grandeza de Jesus. Ele esconde a sabedoria de Jesus (Jesus aprende de José); oculta sua concepção milagrosa, virginal (só ele e Maria participam do segredo).

Todavia ele tem uma tarefa que será eminentemente a tarefa da Igreja no mundo: proteger, defender, nutrir, educar Jesus. Como a Igreja futura, José sofre perseguições com Jesus. Junto a Jesus vive do seu trabalho, na pobreza, no desconforto. Torna-se, assim, aquele modelo vivo sobre o qual o Pai do céu quis que se plasmasse seu filho feito homem. Com Maria, é o único mestre de Jesus (Jo 7,15). Jesus o chama com o mesmo nome inefável com que usa chamar seu Pai do céu: “Abbá”, com aquela particular confiança que existe no nosso “paizinho”.

É a invocação filial que o Espírito Santo sugere à alma na mais profunda intimidade da oração cristã (Gl 4,6; Rm 8,15).

Era tarefa do pai hebreu a educação dos filhos para a oração. Era José que acompanhava Jesus à sinagoga cada sábado e ao templo de Jerusalém cada ano (Lc 4,16; 2,41s). A religião hebraica reservava um lugar privilegiado aos homens, quer no templo, quer na sinagoga. Cabia a José introduzir o filho nos ritos grandiosos de Jerusalém e naqueles mais familiares na sinagoga de Nazaré. Ainda era próprio dele dirigir as orações em casa, dar seqüência aos atos litúrgicos, e junto com Maria, quando Jesus era muito pequeno, orientá-lo para as primeiras preces.

Foi de José que Jesus apreendeu aquele ritmo de oração tão simples e tão solene, tão confiante e tão elevado que ecoa no Pai Nosso.

Endereçando seu filho ao amor e às mais variadas atividades, José o introduzia espontaneamente, na trilha do ensino bíblico, naquela visão completa do mundo que teria alcançado no Evangelho os cumes mais altos e maravilhosos. Observando os lírios do campo que o pai do céu reveste de glória, ou os pássaros do céu que não caem sem que o Pai o queira, ou as combinações variadíssimas da vida comum, que compareceriam mais tarde em suas parábolas, Jesus crescia e amadurecia em um ambiente natural e sereno, ficava cada vez mais robusto, sadio e impregnado de vida religiosa (Lc 2,40).

Jesus, assim, dia após dia, se tornava um adulto. Ele que será o modelo universal, exemplo e ideal para todas as gerações e continentes, teve em José o seu modelo. A tenacidade e a firmeza com que enfrentou sua tarefa até á cruz (Lc 12,50), a dedicação ao próximo, o amor ao trabalho, e a escolha do tipo de trabalho, a humildade e a mansidão que ostentava no meio do ódio e do orgulho dos homens, o silêncio com que envolveu sua pessoa e que impregnava sempre a sua oração, tudo, em Jesus continha algo de José, tudo manifestava que era “filho de José”.

Naturalmente aquele filho/discípulo se tornava por sua vez mestre e exemplo para José, em tudo, todos os dias, num crescendo proporcional à idade e a um sempre mais íntimo conhecimento do pai. Não obstante tudo José era para o filho a encarnação da vontade de Deus, também quando não se tratava de executar ordens vindas por meio de anjos. Toda a vida que Jesus passou obedecendo a José (Lc 2,51) foi vivida por ele na adesão à vontade divina (Jo 8,29).

Podemos, então, afirmar que a mensagem mais verdadeira de José para nós, gente do século XXI, a encontramos nas palavras de Jesus, no seu Evangelho, na sua pessoa, nas suas ações, no seu modo de viver e de ensinar, de responder e de tratar, sobretudo na maneira de orar e viver perante Deus. Nada nos tem a ensinar a não ser o Evangelho de seu filho, não tem outro exemplo a nos apresentar a não ser Jesus.

Giuseppe Danieli

(Schede Bibliche Pastorali – Vol V – 153 - Tradução de Giuseppe Perona)

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